ITIL sob ataque: o fim está próximo ou é só mais uma reinvenção?

Nas últimas semanas, esbarrei em algumas threads no LinkedIn decretando o “fim do ITIL” (de novo!).

O gatilho? Um paper da Forrester com um título de impacto (The ITIL Dilemma: Balancing Investment with Value in IT Service Management) e um detalhe que já diz muito sobre o jogo: 8 páginas por algo perto de US$ 1.495. Pouca gente lê o original, muita gente comenta o comentário de alguém. Aí a discussão vira telefone sem fio.

Considero perfeitamente compreensível que empresas e institutos busquem inovar e explorar produtos nesse segmento, oferecendo abordagens que, por vezes, visam ser mais modernas, especializadas ou acessíveis (isso já passou pela cabeça deste que vos escreve também).

Mas a coisa já começa torta quando se tenta apresentar uma nova opção descredibilizando a opção dominante.  É mais ou menos o que o paper da Forrester faz. E fica um pouco pior quando o paper indica um framework bastante específico, recente e praticamente desconhecido como o próximo grande salto na disciplina de ITSM (falarei dele mais adiante).

 

Como chegamos até aqui

O ITIL nasceu no setor público britânico. Em 2013, veio a AXELOS (joint venture do governo do Cabinet Office do Reino Unido com a empresa privada Capita) para dar escala — e, claro, rentabilizar.

Em 2018, um ponto de inflexão: a PeopleCert torna-se o único instituto de exame. Sai o arranjo com vários IEs (APMG, EXIN etc.), entra a centralização.

Posteriormente, outras medidas como a obrigatoriedade de adquirir treinamentos em ITIL somente com o exame de certificação associado e a compra da Axelos pela Peoplecert deixaram o clima ainda mais tenso entre a comunidade ITSM e os próprios parceiros da Peoplecert.

Naturalmente, antigos players perderam espaço e foram buscar alternativas.

O EXIN contribuiu com o lançamento do VeriSM. Outros nomes apareceram: fitSM, YaSM, ISM e mais um batalhão de opções no “quadrante mágico dos frameworks de ITSM”.

Mais recentemente, a Pink Elephant — que sempre esteve por perto desde os primórdios — rompeu relações com a Peoplecert e apresentou o integratedITSM™.

O XLA Institute surfou a onda da experiência (XLA). E a HIT Global chegou com o Humanizing IT™ — o “alecrim dourado” citado no paper da Forrester.

Essa movimentação não derruba o ITIL, mas mostra um campo mais vivo do que parece quando olhamos só os certificados pendurados na parede.

 

Uma breve história sobre apetite a risco

Anos atrás, participei de uma rodada de investimento para uma startup de homeschooling. Pitch redondo, sala empolgada. Depois dos aplausos, perguntei a um dos mais entusiasmados se colocaria os próprios filhos no modelo. A resposta veio sem hesitar: “Acredito que não.”

Guarde essa ideia. Todo mundo gosta de inovação; poucos topam o risco que vem junto. No ITSM, isso tem efeitos bem concretos.E isso explica por quê é tão difícil tirar o ITIL do jogo.

O que o ITIL acumulou nas últimas décadas é algo que não se compra de um dia para o outro:

  • Massa crítica de casos em organizações grandes e pequenas;
  • Linguagem comum entre times, consultorias e fornecedores;
  • Ferramentas líderes (ServiceNow, Helix, Halo ITSM e afins) modeladas com base nele;
  • Sinal de mercado: descrição de vaga pedindo ITIL, cliente pedindo ITIL, auditoria pedindo ITIL.

Além disso, o framework se mexeu: o salto para o ITIL 4 aproximou o discurso de valor, fluxo e práticas modernas. Some a isso a moeda forte das certificações reconhecidas globalmente associada a um modelo de aprendizado contínuo e uma comunidade pulsante e em expansão e você entende por que o ITIL continua sendo o porto seguro.

 

E as alternativas? Têm valor — e limites (por enquanto)

Eu gosto do fitSM: espírito open source, linguagem enxuta, boa porta de entrada para times menores, empresas pequenas ou médias iniciantes em ITSM ou ambientes acadêmicos. Mas, por posicionamento, não mira o mainstream. Aposto que 95% de quem ler este artigo provavelmente nunca ouviu falar dele.

Gosto também do debate sobre XLA (experiência) e do uso de VSM (value stream management). São necessários. Ainda assim, muitas vezes falta lastro: repositório de conteúdo mais robusto, casos replicáveis, métricas comparáveis e uma trilha de formação que escale sem depender de um “guru”.

Enquanto isso, o ITIL segue oferecendo um guarda-chuva onde a maioria das dores de ITSM encontram abrigo — mesmo que, em algumas frentes, ele não seja o mais brilhante da turma.

 

Os efeitos da predominância

Quando um framework predomina, aparecem efeitos colaterais: o acesso encarece e a renovação de vozes diminui. A barreira de entrada sobe. Seja por proteção intelectual, por custo ou por pura conveniência.

A disciplina fica mais pobre quando a conversa concentra demais. Veja quem são os autores das versões mais recentes do ITIL , bem como dos novos frameworks que estão surgindo no mercado. Em sua maioria, são os mesmos autores que já escreviam sobre isso na década de 90.

Compare com o universo de gestão de produto: Scrum, Kanban, Lean, Design Thinking… várias escolas convivendo, conteúdos acessíveis, autores novos surgindo o tempo todo. Não há um “rei”. Há um ecossistema que se retroalimenta.

No ITSM, a concentração ainda dita o ritmo. E a conta chega: menos diversidade, menos experimentação, menos renovação.

 

O nosso papel nessa história

Não é sobre “derrubar” o ITIL. É sobre equilíbrio. Manter o que dá sustentação e, ao mesmo tempo, criar espaço para o que aumenta a relevância do nosso trabalho.

Segurar o que funciona. O ITIL continua sendo o trilho que dá previsibilidade para processos críticos. Faz sentido mantê-lo como base onde estabilidade é requisito, sem tentar refatorar o trem enquanto ele está em movimento.

Explorar nas bordas. Em vez de instalar siglas, escolha um fluxo específico e rode pequenas experiências com SRE, DevOps, XLA ou VSM. Defina o que quer observar e faça ciclos curtos de ajuste. Quando funcionar, você não precisa “vender a ideia”: os números contam a história.

Evidência antes do marketing. Toda proposta “revolucionária” merece um piloto com metas claras. Um trimestre é o suficiente para comparar backlog, tempo de resolução e satisfação. Se o resultado for bom, evolui. Se não for, aprendemos barato.

Conhecimento que circula. Comunidades crescem quando o aprendizado sai da gaveta. Dá para compartilhar resumos internos, lições aprendidas, lightning talks e trilhas de estudo — sem violar propriedade intelectual. Isso, no fim do dia, cria alternativas reais à hegemonia.

 

Então… o ITIL vai acabar?

Sinceramente? Não.

O que vemos é reposicionamento. O ITIL continua como base confiável, enquanto outros modelos ocupam espaços onde ele não é tão confortável. A pergunta que ajuda não é “quem cai?”, mas como combinamos o melhor de cada um sem transformar isso numa guerra de siglas.

Essa combinação dá autoridade, cria relevância e fortalece nossa musculatura intelectual enquanto profissionais da área.

Lembre-se: Porto seguro não é destino. É ponto de partida.

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